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Um Pequeno Sacrifício

            Sentia nas mãos um peso muito maior do que as poucas gramas do bichinho  de pelúcia. Um peso que subia pelos braços, estendendo-se até os ombros e se alojando em algum lugar abstrato atrás das costas. O que tinha em mãos era apenas um oferenda, tinha de ser deixada para trás, tanto em matéria quanto em espírito. As suas lembranças, seus sentimentos, todos os significados que foram impregnados no pequeno objeto. Alissia tinha agora que deixar tudo queimar, purificando na fumaça seus erros passados. Uma nova vida se erguia diante dela, uma experiência inédita para a qual não poderia levar bagagem alguma. Por diversas razões, escolheu o Pequenino em suas mãos para sofrer a mudança. Precisava de um símbolo, de um mártir que lhe amaldiçoasse os sonhos e a fizesse lembrar de que aquele caminho era um caminho sem volta. E como aquelas lembranças a invadiam! Tomada por um desespero repentino, Alissia abraçou o seu consolador de sempre, queren...

Quando a placa cair

            Quem dera ele andasse de cabeça baixa. Desta forma não veria a imensa placa de metal pendurada em sua frente. Talvez fosse melhor assim, pois, se andasse de cabeça baixa, veria no chão um dos pregos que seguravam a imensa placa. Não fez diferença, pois agora estava num impasse. Como poderia prosseguir, sendo que teria de passar por debaixo daquela gigantesca e amarela guilhotina balançando ao vento? Precisaria esperar, pois tinha a certeza de que na cabeça de alguém aquela placa iria cair, e não podia ser na dele. Uma pessoa passou. A placa balançava, mas continuava lá. Três era seu número da sorte, iria passar por terceiro. Mas em seguida veio um casal, e ele perdeu o terceiro. A placa continuava balançando. Acima dele uma velha que regava as plantas da janela do apartamento o olhava com desconfiado interesse.             Três amigos passaram rindo, conversando e gritando. A pla...

Dança da Lua

            Entre giros sutis e rodopios no silêncio, ela sorri e chora, equilibrando-se na ponta da sapatilha, lançando ao ar seu vestido branco, que é prata, que é vermelho.             Um espetáculo que apenas a Lua presencia, e parece inchar de orgulho e admiração ao ver a coreografia que se desenrola dentro da imensa solidão da floresta. A Lua sorri e chora, iluminando as cores daquele vestido branco como se fez, prata como se vê, vermelho como se sente e tão negro quanto a maravilhosa luz da noite.             E a coreografia parece dançar junto da moça só, como que separados em um par. Pois a dança não é prevista, ela é sentida e exposta, gritada ao vento como angústia, sussurrada à terra como gratidão, tocada pelas árvores como paixão. E é sutilmente que a Terra, as Árvores e o Vento parecem dançar junto da moça de vestido verde, e a lu...

Como Sobreviver na Selva

            Foi apenas uma falha técnica. Ivo estava convencido disso, pois ele mesmo revisara o avião antes de fazer a decolagem. Mas se ele revisou, e ele pilotou, e ainda assim o avião caiu, então de quem poderia ser a culpa? Do céu, é claro! A praga que despencava feroz das nuvens, molhando tudo e derrubando pássaros metálicos.             Mas isso não importava mais. Ivo estava a uma altura de 3.000 pés quando o monomotor demonstrou sinais de falha. E justo enquanto sobrevoava uma cadeia de montanhas na Mata Atlântica. O paraquedas foi a única opção, já que não havia a menor esperança de forçar um pouso em meio à floresta. Galhos se partiram, tecido se rasgou. Ivo ficou preso no alto daquelas árvores, lembrando-se do barulho que o seu querido e único avião fez ao colidir a alguns quilômetros de onde estava.             Já que o pilot...

Um Brinco Perdido

            Anita perdeu um brinco. Deu-se conta disso ao coçar a orelha distraidamente. Tinha essa mania sempre que ficava nervosa, e aquele garoto, tinha de admitir, a deixava mais nervosa que o normal. O encontrou por acaso, sentando-se ao lado dele em um banco de praça, e como que por educação, começaram a conversar. Ela havia se sentado para poder ler a mensagem que sua amiga lhe enviou pelo celular. O conteúdo era a descrição detalhada do cachorro de estimação que ela ganhara no aniversário. Aniversário este que Anita não pôde comparecer, pois estava visitando o pai no estado vizinho. O pai ainda tinha alguns compromissos durante as tardes dos dias de semana, então ela passeava pela cidade, visitava cafés, comprava roupas e brincos. Incluindo uma loja que visitara naquele mesmo dia, onde provou um brinco radiante, mas excessivamente caro, e acabou não o comprando. Isso queria dizer que...          ...

Giz

            O pequeno garoto começou a tossir forte, seus olhos quase fechados lacrimejavam enquanto o irmão mais velho ria por detrás da nuvem de pó de giz. – Você é mesmo uma menina, Guga! –             O menino menor abriu a boca para gritar “cala a boca, Chris!”, mas isso só fez com que engolisse mais pó de giz e tossisse ainda mais. – Vem cá mulherzinha, vamos sair daqui – Disse Christian, passando o braço por cima dos ombros do irmão mais novo. Este tentou se desvencilhar com socos e empurrões, mas acabou desistindo. – Por que você tem que ser tão mau, mano? – – Me desculpa Guga, prometo que nunca mais vou fazer isso. Que tal uma corrida pra ver quem consegue fugir da escola primeiro? – – Mas você é maior, não é justo! – – Eu te dou 15 segundos de dianteira, que tal? – – E se eu vencer, eu assisto desenho hoje – disse Gustavo, enquanto começava a correr na frente. Antes que ...

Enquanto o Tempo Espera

            Senti o rosto arder com a força da areia trazida pelo vento. Protegi minha face com os braços e fechei os olhos, torcendo para não ser uma tempestade de areia. Por sorte, passou. Observando a areia que se tinha acumulado em minhas mãos se esvair por entre meus dedos, vi inevitavelmente a imagem de uma ampulheta. Logo lá estava eu, a divagar sobre os mistérios do tempo. Depois de ter perdido a conta dos dias que se passaram, e ainda depois de ter a certeza de que estava perdido no deserto, ainda arranjava tempo para divagações. Foi a loucura que finalmente me alcançou, só pode ter sido isso. Naquele instante, sentar no topo de uma duna e me pôr a pensar parecia a coisa mais sensata do mundo. Afinal, meus pensamentos eram mais reais do que o deserto em si. Eu os sentia mais palpáveis, e eles só existiam na minha cabeça, eu sei, mas de qualquer forma o deserto é abstrato. Entre duas irrealidades, confio mais naquela que vem de dentro de mim....