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Mostrando postagens de 2013

Como Sobreviver na Selva

            Foi apenas uma falha técnica. Ivo estava convencido disso, pois ele mesmo revisara o avião antes de fazer a decolagem. Mas se ele revisou, e ele pilotou, e ainda assim o avião caiu, então de quem poderia ser a culpa? Do céu, é claro! A praga que despencava feroz das nuvens, molhando tudo e derrubando pássaros metálicos.             Mas isso não importava mais. Ivo estava a uma altura de 3.000 pés quando o monomotor demonstrou sinais de falha. E justo enquanto sobrevoava uma cadeia de montanhas na Mata Atlântica. O paraquedas foi a única opção, já que não havia a menor esperança de forçar um pouso em meio à floresta. Galhos se partiram, tecido se rasgou. Ivo ficou preso no alto daquelas árvores, lembrando-se do barulho que o seu querido e único avião fez ao colidir a alguns quilômetros de onde estava.             Já que o pilot...

Um Brinco Perdido

            Anita perdeu um brinco. Deu-se conta disso ao coçar a orelha distraidamente. Tinha essa mania sempre que ficava nervosa, e aquele garoto, tinha de admitir, a deixava mais nervosa que o normal. O encontrou por acaso, sentando-se ao lado dele em um banco de praça, e como que por educação, começaram a conversar. Ela havia se sentado para poder ler a mensagem que sua amiga lhe enviou pelo celular. O conteúdo era a descrição detalhada do cachorro de estimação que ela ganhara no aniversário. Aniversário este que Anita não pôde comparecer, pois estava visitando o pai no estado vizinho. O pai ainda tinha alguns compromissos durante as tardes dos dias de semana, então ela passeava pela cidade, visitava cafés, comprava roupas e brincos. Incluindo uma loja que visitara naquele mesmo dia, onde provou um brinco radiante, mas excessivamente caro, e acabou não o comprando. Isso queria dizer que...          ...

Giz

            O pequeno garoto começou a tossir forte, seus olhos quase fechados lacrimejavam enquanto o irmão mais velho ria por detrás da nuvem de pó de giz. – Você é mesmo uma menina, Guga! –             O menino menor abriu a boca para gritar “cala a boca, Chris!”, mas isso só fez com que engolisse mais pó de giz e tossisse ainda mais. – Vem cá mulherzinha, vamos sair daqui – Disse Christian, passando o braço por cima dos ombros do irmão mais novo. Este tentou se desvencilhar com socos e empurrões, mas acabou desistindo. – Por que você tem que ser tão mau, mano? – – Me desculpa Guga, prometo que nunca mais vou fazer isso. Que tal uma corrida pra ver quem consegue fugir da escola primeiro? – – Mas você é maior, não é justo! – – Eu te dou 15 segundos de dianteira, que tal? – – E se eu vencer, eu assisto desenho hoje – disse Gustavo, enquanto começava a correr na frente. Antes que ...

Enquanto o Tempo Espera

            Senti o rosto arder com a força da areia trazida pelo vento. Protegi minha face com os braços e fechei os olhos, torcendo para não ser uma tempestade de areia. Por sorte, passou. Observando a areia que se tinha acumulado em minhas mãos se esvair por entre meus dedos, vi inevitavelmente a imagem de uma ampulheta. Logo lá estava eu, a divagar sobre os mistérios do tempo. Depois de ter perdido a conta dos dias que se passaram, e ainda depois de ter a certeza de que estava perdido no deserto, ainda arranjava tempo para divagações. Foi a loucura que finalmente me alcançou, só pode ter sido isso. Naquele instante, sentar no topo de uma duna e me pôr a pensar parecia a coisa mais sensata do mundo. Afinal, meus pensamentos eram mais reais do que o deserto em si. Eu os sentia mais palpáveis, e eles só existiam na minha cabeça, eu sei, mas de qualquer forma o deserto é abstrato. Entre duas irrealidades, confio mais naquela que vem de dentro de mim....

Carolina

Nasceu por si só Daquela que não a queria Privada de amor e afeto A morte lhe convinha Mas a vida é bela e ela queria a vida Cresceu por si só Onde não poderia Privada de pão e água A pobreza lhe convinha Mas a riqueza ostenta brilho e ela queria a riqueza Sonhou por si só Com lugares aonde não iria Privada de oportunidades O conformismo lhe convinha Mas o mundo é grandioso e ela queria o mundo Falou por si só Para quem não a ouvia Privada de atenção O anonimato lhe convinha Mas a fama eleva às nuvens e ela queria a fama Brilhou enfim sua estrela Clara como a luz do dia E todos sabiam seu nome Pois a fama lhe convinha Mas o anonimato é silencioso e ela preferia o anonimato Girou ao redor do globo Fez o que nunca faria Conhecia cada pátria Pois o mundo lhe convinha Mas o conformismo é confiável e ela preferia o conformismo Segurava em suas mãos Tudo o que não cabia Era a dona do que avistava Pois a riqueza lhe convinh...

Uísque Puro

            O homem velho de apenas quarenta anos serviu-se de mais um copo de uísque. Ao seu lado, o garotinho não sabia o que tinha acontecido, mas sabia o que ia acontecer. Já vira João bebendo daquele jeito antes, e não gostava. Desagradava-lhe principalmente o rosto sofrido, a expressão de culpa e remorso que lhe tomava conta embora, para muitos, ele ainda parecesse um homem durão. Mas a criança sabia, assim como sabia muitas coisas apenas porque é uma criança: quanto mais dura fosse a expressão do homem, mais ele estaria chorando por dentro. Foi assim, com esse pensamento em mente que o menino se aproximou de João, que não deveria ser velho, mas era. – Por que o senhor não chora? –             Mais um copo foi virado e novamente servido antes que o gigante se voltasse para o seu Davi. De onde surgira aquela criança? João não sabia dizer se ela era real ou fruto do seu estado já avançado...

Minimalista

            Minúscula, ela apareceu diante de seus olhos. Era escuro ainda, mas uma luminosidade promissora já invadia o céu. Ainda assim, Sofia se espantou com a descoberta da pequena flor roxa. Era tão timidamente baixa que as folhas da grama ameaçavam cobri-la, e as gotas de orvalho pesavam como pequenas pedras. No dia anterior, a mulher mal conseguia reparar nas grandes orquídeas chamativas, tamanha era sua distração. Agora, no entanto, encontrava-se no topo de uma montanha, com a imensidão do mundo deitando sob seus olhos e a promessa de um muito aguardado sol a surgir no horizonte. Nada daquele macrocosmo parecia ter a mesma importância que a miniatura de flor, como aquele detalhe esquecido da vida de Sofia que perdera o sentido perto do desespero e da frustração, mas que agora era relembrado e redescoberto como que por acaso. Foi uma boa decisão ter subido até aquele cume sagrado, a visão minimalista era prova disto.     ...