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Mostrando postagens de outubro, 2012

Pela Metade

O dia claro zombava da situação, do local, e das pessoas que se punham a chorar próximas a uma grande caixa de madeira lustrada, cujo conteúdo um dia conheceu todos ali presentes. A grande maioria ensaiara o choro no dia anterior, e o resto simplesmente abaixava a cabeça e imitava exagerados soluços. Cinco pessoas não pareciam estar de acordo com a atmosfera: quatro fortes homens contratados para fazerem o trabalho sujo: carregar e enterrar o caixão, e o padre. Este, embora tivesse comovente voz, parecia não se importar com a dor que todos deveriam estar sentindo. Na verdade, ele parecia estar menos comovido do que aqueles que fingiam o soluço. Seu discurso, nem precisou ensaiar, pois sempre fizera o mesmo discurso todas as vezes, o que lhe poupava saber quem era aquele merecedor de suas palavras. Vazias elas ecoavam até os ouvidos que tentavam prestar atenção no tic-tac do relógio. Quando o padre terminou de falar, dois homens de meia-idade saíram em silêncio, tentando não serem ...

O Homem Eterno

                           Ele cortava os próprios cabelos como se estivesse tosando mais uma de suas ovelhas. Por séculos pensou ser eterno, mas caía agora branca na pia a prova de que estava errado. Durante todo aquele tempo, seguia a rotina do trabalho perfeito para ele, na vida que ele sempre sonhou. Eternamente desejara que tudo aquilo terminasse um dia, mas que acabasse simplesmente, e não que começasse a desmoronar aos poucos como uma ampulheta de mil anos que há muito fora virada.             A vida seguiu um ritmo próprio, não respeitou as suas ideias e muito menos as suas expectativas. Agora estava condenado à descoberta de sua própria velhice. Percebia então que a eternidade só havia começado. A verdadeira imensidão do rastejar de sua existência começaria no instante em que o último fio de cabelo fosse cortado.  ...

Reggae Mendigo

              É estranho saber que algo diferente vai acontecer. Não é todo o dia que se vai a uma festa das grandes aberta ao público. Normalmente estas são todas ruins, as boas são pagas. Mas não esta festa, ela é diferente. Já estou chegando perto, e dá para ouvir o barulho claramente, como se estivesse dentro do meu carro. Estaciono longe. Não que não tenha mais vagas, mas é que é bom caminhar de vez em quando. Ao longo das ruas, observo as barracas miseráveis de produtos piratas que se amontoam o mais perto possível da festa. Se as outras festas eram ruins, a culpa foi de terem deixado esses vagabundos chegarem muito perto.             Eles gritam, berram seus produtos em nossos ouvidos. Mentem que são de boa qualidade. Logo um deles me chama a atenção. Um negro baixo, cabelo rastafari, gorro com as cores da Jamaica, pés descalços com suas solas tremendamente dur...